Livro Esgotamento Espiritual Pdf 49
6. O meu predecessor, Bento XVI, renovou o convite a eliminar as causas estruturais das disfunções da economia mundial e corrigir os modelos de crescimento que parecem incapazes de garantir o respeito do meio ambiente.[10] Lembrou que o mundo não pode ser analisado concentrando-se apenas sobre um dos seus aspectos, porque o livro da natureza é uno e indivisível, incluindo, entre outras coisas, o ambiente, a vida, a sexualidade, a família, as relações sociais. É que a degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana.[11] O Papa Bento XVI propôs-nos reconhecer que o ambiente natural está cheio de chagas causadas pelo nosso comportamento irresponsável; o próprio ambiente social tem as suas chagas. Mas, fundamentalmente, todas elas se ficam a dever ao mesmo mal, isto é, à ideia de que não existem verdades indiscutíveis a guiar a nossa vida, pelo que a liberdade humana não tem limites. Esquece-se que o homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza.[12] Com paterna solicitude, convidou-nos a reconhecer que a criação resulta comprometida onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente nossa propriedade e onde o consumimos somente para nós mesmos. E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos.[13]
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27. Outros indicadores da situação actual têm a ver com o esgotamento dos recursos naturais. É bem conhecida a impossibilidade de sustentar o nível actual de consumo dos países mais desenvolvidos e dos sectores mais ricos da sociedade, onde o hábito de desperdiçar e jogar fora atinge níveis inauditos. Já se ultrapassaram certos limites máximos de exploração do planeta, sem termos resolvido o problema da pobreza.
48. O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social. De facto, a deterioração do meio ambiente e a da sociedade afectam de modo especial os mais frágeis do planeta: Tanto a experiência comum da vida quotidiana como a investigação científica demonstram que os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres.[26] Por exemplo, o esgotamento das reservas ictíicas prejudica especialmente as pessoas que vivem da pesca artesanal e não possuem qualquer maneira de a substituir, a poluição da água afecta particularmente os mais pobres que não têm possibilidades de comprar água engarrafada, e a elevação do nível do mar afecta principalmente as populações costeiras mais pobres que não têm para onde se transferir. O impacto dos desequilíbrios actuais manifesta-se também na morte prematura de muitos pobres, nos conflitos gerados pela falta de recursos e em muitos outros problemas que não têm espaço suficiente nas agendas mundiais.[27]
51. A desigualdade não afecta apenas os indivíduos mas países inteiros, e obriga a pensar numa ética das relações internacionais. Com efeito, há uma verdadeira dívida ecológica, particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais efectuado historicamente por alguns países. As exportações de algumas matérias-primas para satisfazer os mercados no Norte industrializado produziram danos locais, como, por exemplo, a contaminação com mercúrio na extracção minerária do ouro ou com o dióxido de enxofre na do cobre. De modo especial é preciso calcular o espaço ambiental de todo o planeta usado para depositar resíduos gasosos que se foram acumulando ao longo de dois séculos e criaram uma situação que agora afecta todos os países do mundo. O aquecimento causado pelo enorme consumo de alguns países ricos tem repercussões nos lugares mais pobres da terra, especialmente na África, onde o aumento da temperatura, juntamente com a seca, tem efeitos desastrosos no rendimento das cultivações. A isto acrescentam-se os danos causados pela exportação de resíduos sólidos e líquidos tóxicos para os países em vias de desenvolvimento e pela actividade poluente de empresas que fazem nos países menos desenvolvidos aquilo que não podem fazer nos países que lhes dão o capital: Constatamos frequentemente que as empresas que assim procedem são multinacionais, que fazem aqui o que não lhes é permitido em países desenvolvidos ou do chamado primeiro mundo. Geralmente, quando cessam as suas actividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida, esgotamento dalgumas reservas naturais, desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras, colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que já não se pode sustentar.[30]
57. É previsível que, perante o esgotamento de alguns recursos, se vá criando um cenário favorável para novas guerras, disfarçadas sob nobres reivindicações. A guerra causa sempre danos graves ao meio ambiente e à riqueza cultural dos povos, e os riscos avolumam-se quando se pensa na energia nuclear e nas armas biológicas. Com efeito, não obstante haver acordos internacionais que proíbem a guerra química, bacteriológica e biológica, subsiste o facto de continuarem nos laboratórios as pesquisas para o desenvolvimento de novas armas ofensivas, capazes de alterar os equilíbrios naturais.[34] Exige-se da política uma maior atenção para prevenir e resolver as causas que podem dar origem a novos conflitos. Entretanto o poder, ligado com a finança, é o que maior resistência põe a tal esforço, e os projectos políticos carecem muitas vezes de amplitude de horizonte. Para que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela sua incapacidade de intervir quando era urgente e necessário fazê-lo?
63. Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica e as suas múltiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem vir duma única maneira de interpretar e transformar a realidade. É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de verdade, construir uma ecologia que nos permita reparar tudo o que temos destruído, então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem sequer a sabedoria religiosa com a sua linguagem própria. Além disso, a Igreja Católica está aberta ao diálogo com o pensamento filosófico, o que lhe permite produzir várias sínteses entre fé e razão. No que diz respeito às questões sociais, pode-se constatar isto mesmo no desenvolvimento da doutrina social da Igreja, chamada a enriquecer-se cada vez mais a partir dos novos desafios.
65. Sem repropor aqui toda a teologia da Criação, queremos saber o que nos dizem as grandes narrações bíblicas sobre a relação do ser humano com o mundo. Na primeira narração da obra criadora, no livro do Génesis, o plano de Deus inclui a criação da humanidade. Depois da criação do homem e da mulher, diz-se que Deus, vendo a sua obra, considerou-a muito boa (Gn 1, 31). A Bíblia ensina que cada ser humano é criado por amor, feito à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26). Esta afirmação mostra-nos a imensa dignidade de cada pessoa humana, que não é somente alguma coisa, mas alguém. É capaz de se conhecer, de se possuir e de livremente se dar e entrar em comunhão com outras pessoas.[37] São João Paulo II recordou que o amor muito especial que o Criador tem por cada ser humano confere-lhe uma dignidade infinita.[38] Todos aqueles que estão empenhados na defesa da dignidade das pessoas podem encontrar, na fé cristã, as razões mais profundas para tal compromisso. Como é maravilhosa a certeza de que a vida de cada pessoa não se perde num caos desesperador, num mundo regido pelo puro acaso ou por ciclos que se repetem sem sentido! O Criador pode dizer a cada um de nós: Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia (Jr 1, 5). Fomos concebidos no coração de Deus e, por isso, cada um de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário.[39]
66. As narrações da criação no livro do Génesis contêm, na sua linguagem simbólica e narrativa, ensinamentos profundos sobre a existência humana e a sua realidade histórica. Estas narrações sugerem que a existência humana se baseia sobre três relações fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra. Segundo a Bíblia, estas três relações vitais romperam-se não só exteriormente, mas também dentro de nós. Esta ruptura é o pecado. A harmonia entre o Criador, a humanidade e toda a criação foi destruída por termos pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos como criaturas limitadas. Este facto distorceu também a natureza do mandato de dominar a terra (cf. Gn 1, 28) e de a cultivar e guardar (cf. Gn 2, 15). Como resultado, a relação originariamente harmoniosa entre o ser humano e a natureza transformou-se num conflito (cf. Gn 3, 17-19). Por isso, é significativo que a harmonia vivida por São Francisco de Assis com todas as criaturas tenha sido interpretada como uma sanação daquela ruptura. Dizia São Boaventura que, através da reconciliação universal com todas as criaturas, Francisco voltara de alguma forma ao estado de inocência original.[40] Longe deste modelo, o pecado manifesta-se hoje, com toda a sua força de destruição, nas guerras, nas várias formas de violência e abuso, no abandono dos mais frágeis, nos ataques contra a natureza.